O INTRUSO (último capítulo)


1.
Tudo começou com o nascimento do filho. Desejado, esperado, festejado. Mas o que era para ser o fruto máximo de uma bonita relação de amor se transformou no início de seu infortúnio. É claro que estava super feliz em ser pai pela primeira vez. Sentiu uma emoção sem tamanho, estava realizando um grande sonho de vida. O problema não era com a paternidade em si e sim com um efeito colateral que ele não esperava. Sua esposa, tão apaixonada, que o admirava tanto e que fazia de tudo para preservar o clima de romance entre os dois, mudou completamente. Seu olhar, seu tempo, sua energia, suas ações, absolutamente tudo passou a se direcionar exclusivamente para o filho. Pode-se pensar: é claro, né, o que ele esperava?! Mas não era bem assim. Ele até tinha consciência que inevitavelmente a relação de homem e mulher que tinha com a esposa seria afetada para sempre. Mas achava que a união de afeto de dois se tornaria algo mais amplo, mais intenso, mais sublime: seriam um trio ligados pelo amor. Mas não foi isso que aconteceu.


2.
No começo, ele mesmo estranhando, se conformou. A insegurança da mulher em cuidar do bebê somada à sua realização com a maternidade deviam estar gerando aquela reação. Ele refletia que só quem carrega uma criança dentro do seu próprio corpo durante tantos meses poderia compreender o grau de intensidade daquela ligação. Assim, durante as primeiras semanas se culpou por tamanha carência e assimilou a total devoção de sua mulher àquele pequeno ser que ele também amava tanto. Tinha lido em algum manual sobre paternidade que a criança só reconhece o pai bem depois mesmo. Mas passaram o primeiro mês, o segundo, o quarto... e nada mudava!  Sua mulher tinha uma relação quase doentia com o menino. Eram 24 horas de adoração. Não reconhecia mais a sua esposa naquela mãe. O carinho, o cuidado, a paixão que ela dedicava a ele, marido, tinham simplesmente desaparecido como num passe de mágica! Não se tocavam, não trocavam os olhares cúmplices típicos dos casais que se conhecem bem, não sorriam juntos, sequer conversavam mais! Sabia que o sexo seria afetado e isso tinha assimilado. Se virava sozinho quando a necessidade fisiológica transbordava. Mas se sentia um completo estranho em sua própria casa. Havia se tornado um mordomo, um funcionário, um acessório para ajudar – apenas quando a ajuda fosse solicitada, que fique claro – nos cuidados com seu filho. Mas seu afeto e seu carinho pareciam inócuos, desnecessários, até indesejados. Não que gostasse da metáfora sexual para descrever sua posição na relação entre sua mulher e seu filho, mas se sentia como aquele cara que convence a namorada a fazer um ménage à trois e quando a situação acontece, o garanhão que pensava que iria deitar e rolar com duas mulheres, acaba não ficando à vontade com química que rola entre elas... Mas era assim que se sentia entre as duas pessoas que mais amava na vida: um intruso.


3.
A vida dele passou a ser esperar. Imaginou que passados seis meses a coisa iria melhorar, com a criança interagindo mais com outras pessoas e com o mundo em geral, mas nada mudou. Pensou então que um prazo razoável  seria aguardar o  momento em que o filho deixasse de mamar, mas passado um ano e meio o menino ainda não tinha largado o peito! Sua esposa argumentava que era orientação do pediatra mas ele intuía que era mais do que isso. A insistência em não desmama-lo não tinha nada a ver com a alimentação do guri. Na loucura dela, ela não queria perder o laço físico com o filho. Ela queria manter aquela ligação obrigatória da criança com seu corpo. Às vezes não pareciam mãe e filho: pareciam uma única pessoa, como se o cordão umbilical não tivesse sido rompido com o parto. E a situação só piorava. Ele começou a achar sua esposa cada vez mais afetada, descontrolada. A mulher interessante, inteligente, culta, se tornou monotemática nas conversas com amigos e familiares; não tinha mais interesse em livros, filmes e teatro, anteriormente, sua maior diversão; o consumismo com brinquedos, roupas, CDs e DVDs estava desenfreado. Ele tinha uma visão muito crítica daquilo tudo e achava que aquela conduta começava a fazer mal à criança, cada vez mais anti-social e grudada literalmente na mãe. Além do mais, ele já não aguentava mais ser um coadjuvante, alguém totalmente descartável e  indiferente em sua própria casa... Cogitou até o divórcio! Mas amava muito seu filho para abandoná-lo sozinho nas mãos daquela desequilibrada. Preferiu persistir. Aquilo um dia iria acabar... Tinha que acabar! Porém ficou mesmo assustado quando descobriu acidentalmente que ela estava tomando remédios para ficar mais tranquila, sem lhe dizer nada. Ela nunca esconderia dele algo assim se estivesse no seu estado normal. Ele chegou no limite e decidiu tomar uma atitude. Não iria mais assistir aquele pesadelo passivamente. Iria mostrar sua condição de macho da história e tomar as rédeas da situação na marra, por mais drástica que fosse a medida a ser tomada. Decidiu se vingar.


4.
A decisão pela vingança pareceu perfeita para ele. Ao mesmo tempo que livraria seu filho da ameaça dela, ele próprio seria beneficiado com mais tempo em companhia com o filho. Sabia que as medidas que decidira tomar eram sórdidas e inaceitáveis numa situação normal, mas o quadro exigia providências drásticas. E ele estava desesperado. Justificava o que iria fazer como uma ação altruísta em favor do filho, mas no fundo sabia que agiria de forma mesquinha e egoísta. Mas iria em frente mesmo assim. Seu plano precisaria ser meticulosamente colocado em prática e levaria tempo. Começou pelo básico: sorrateiramente substituiu os remédios que sua esposa estava tomando por placebo. Era essencial que ela não estivesse sob o efeito das drogas até o dia escolhido. Depois, aos poucos, começou a parar de reclamar de seu comportamento com o filho. Tornou-se compreensivo, aceitava as ordens que ela passava para ele e reagia à sua indiferença com bom humor. Precisava ganhar a confiança dela para tudo dar certo. Por fim, passou a estudar na internet métodos para conseguir aplicar o crime perfeito. Ficou impressionado com a quantidade de material que encontrou explicando passo a passo o quê e como deveria fazer. À medida que o derradeiro momento ia se aproximando, ele oscilava entre a determinação e a hesitação em dar prosseguimento ao planejado. Pensou em desistir, mas sempre que via sua esposa repetir a obsessão irracional por aquela criança inocente, se sentia mais decidido. Foi num sábado, semanas depois do primeiro ato executório, que encontrou a oportunidade ideal. Tinham ido para um aniversário de criança e o moleque brincou tanto a tarde toda que chegou exausto em casa, dormindo mais cedo do que o de costume. Normalmente em noites assim, ele iria para a TV assistir um filme enquanto ela ficava no quarto do filho com o notebook pesquisando mais um objeto de consumo para comprar na internet. Mas diante da chance que esperava há dias, pôs o plano em ação. Primeiro a convidou para ver com ele o DVD novo que havia comprado da cantora favorita dela. Depois de relutar um pouco, ela acabou aceitando. Ele estava insistindo e vinha se comportando tão bem ultimamente... E além do mais, o menino estava dormindo mesmo... Após o início do show musical, maliciosamente ele foi até a cozinha e de lá voltou com duas taças do vinho que ela mais gostava. A tola aceitou inocentemente sem ter noção do que estava por vir. Ao final da segunda taça, ele passou a tentar seduzi-la. E surpreendentemente, não foi tão difícil quanto ele esperava. Ela cedeu à sua investida e começaram a se beijar. Tinha tanto tempo que não viviam aquilo que ele acabou se envolvendo e por pouco não esqueceu porque estava ali. Chegou a pensar que seria possível viver uma vida harmônica com ela e que ainda era tempo de abortar sua ideia escrota. Mas rapidamente recobrou sua razão e seguiu firme no seu propósito. Passou a manipular sua ingênua esposa para que seu corpo ficasse na posição ideal do jeitinho que tinha visto na internet. E quando conseguiu não teve jeito: passou a golpeá-la com força.


5.
Seu plano fora executado com perfeição, mas o sucesso completo só viria meses depois. E dependeria de sorte. Com dois meses, um exame laboratorial lhe trouxe a primeira vitória. Com 4 meses, um outro exame, dessa vez de imagem, confirmou o êxito da parte mais delicada e difícil. E após 9 meses de gestação, sua vingança enfim iria efetivamente começar: nascia sua filhinha.

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